março 2006
Por João Paulo Mehl e Marco Antônio Amarelo Konopacki
Diz a lenda que é possível construir uma ponte da montanha de Potosí, na Bolívia, à Madri usando somente a prata extraída das minas potosinas. Na verdade, o que parece uma história de ficção é mais um triste exemplo da exploração que sofre a América Latina. A Bolívia já foi considerada “o nervo principal do reino espanhol”: de lá foram extraídos cerca de 16 milhões de quilos de prata, segundo as sempre minimizadas cifras oficias. Entretanto hoje amarga uma das piores colocações no Índice de Desenvolvimento Humano.
Foi por volta do século XVI que o imperialismo europeu consolidou seus negócios no continente, tornando-o a mola propulsora do desenvolvimento do velho mundo, deixando o legado de incalculáveis milhões de mortes e saques.
Viajando três séculos à frente e descendo um bocado, nos deparamos com o Paraguai, exceção latino-americana, que por meio de um desenvolvimento sustentável apoiado nas massas camponesas, conseguiu dar condições minimamente dignas de vida para a maioria de sua população. Evidente que isto incomodava os imperialistas da época, que viam no pequeno país um mau exemplo para os vizinhos, já que, além de independente dos bancos ingleses, era o mais próspero país da América Latina. A retaliação não tardou: por meio da chamada Tríplice aliança (Brasil, Argentina e Uruguai), financiada pelos bancos e indústrias inglesas, iniciou-se a tarefa de exterminar a pátria, o povo e a esperança da América Latina livre.
Entretanto os paraguaios não estavam sozinhos, outros pensadores também sonhavam com uma América diferente. E foi na carta da Jamaica que Simon Bolivar expressou de maneira clara a importância de formarmos um único bloco como forma de resgatarmos nosso “crédito” deixado pelos exploradores.
Porém o colonialismo tinha criado novas formas e agora não era mais a Espanha nossa inimiga, mas a Inglaterra, que desenvolveu seus tentáculos fundamentada nas teorias mercantilistas sedimentadas no século XVII e que até hoje impõe sua grande prepotência aos demais povos do mundo.
Avançamos mais um pouco no tempo e nos deparamos com o que poderia ter sido o fim do capitalismo: a crise de 29. As reações foram das mais diversas na América Latina. As esquerdas fortaleceram-se enquanto movimentos de massa através dos partidos socialistas e comunistas. Os sindicatos e centrais sindicais também se proliferam por quase todo continente. A classe trabalhadora teve papel fundamental neste período, já que as mudanças provocadas pela crise impulsionaram o desenvolvimento industrial em quase todo o mundo, fortalecendo-a ainda mais.
Temos que nos atentar, no entanto, para o caráter urbano das modificações e dos movimentos de esquerda, que, com exceção do pioneirismo do México e sua revolução, não trataram da reforma agrária, separando assim os rumos dos trabalhadores urbanos e rurais.
No Brasil, elegemos como símbolo a introdução dos direitos trabalhistas no governo de Getúlio Vargas, que, embora progressista, restringiu-se apenas a vitórias para os trabalhadores urbanos. Isto se deu, muito certamente, por conta dos interesses dos sempre fortes coronéis que não permitiram que a questão agrária fosse tratada, nem naquele tempo e nem nunca, visto que ainda possuímos a pior estrutura fundiária do mundo.
Mas essas não foram as únicas lutas pela emancipação dos povos da América Latina. No Chile e no Uruguai, vimos a esquerda se consolidando sobre a forma de partidos socialistas e comunistas. No México e na Argentina, aconteceram os movimentos nacionais e populares como PRI e o Peronismo.
Mesmo o Brasil teve seu líder comunista com o governo caindo acidentalmente nas mãos de João Goulart. O gaúcho quebrou tabus e incomodou os membros da TFP (Tradição Família e Propriedade) quando priorizou as reformas de base, em especial, a Reforma Agrária. Mais rápido que formiga indo para o açúcar, os militares marcharam para a capital para derrubar o sonho de uma nação construída pelas pautas dos movimentos sociais. Pior, não tivemos liderança suficiente para reagir e lutar.
Em seguida, boa parte da América Latina viveu um negro período de dominação pelos militares. Os conservadores, estreitamente ligados ao porrete dos EUA, instituíram algumas das mais sangrentas ditaduras da história contemporânea.
Recentemente, a beira do século XXI, presenciamos a força do maior império de todos os tempos expandir o seu modelo de sociedade pelo mundo, em especial para os países latino-americanos.
Com a política do porrete e depois da bomba atômica, os Estados Unidos passaram a ser os maiores opressores do mundo, tanto no campo político quanto no econômico. Na sociedade estadunidense homogeneizada a diversidade da América Latina incomoda e, como, para eles, somos o seu quintal, aqui só deveriam florescer flores vermelhas, brancas ou azuis.
No entanto, o sentimento de unidade e integração entre os povos, seja pelos movimentos sociais, seja pela sociedade civil organizada, resiste e faz florescer as flores os sonhos do POVO. Presenciamos, portanto, a eleição de grandes líderes populares, como Lula, Hugo Chavez, Evo Morales, Kirchner, Tabarés Vázquez e Rafael Correa.
Este momento histórico fortalece a perspectiva de que a soberania de um povo não se negocia; que a luta pelos direitos dos trabalhadores e dos oprimidos se mantém viva e, principalmente, que Simon Bolivar estava certo quando disse que “todos os povos do mundo que lutaram pela liberdade exterminaram por fim os seus tiranos”.
A negação a Alca e a consolidação do bloco do Mercosul são exemplos da rejeição do modelo estadunidense. Porém, não devemos e nem podemos deixar de ser críticos em relação a estes avanços. Embora eles estejam ocorrendo, a integração tem sido majoritáriamente econômica. É necessário pressão por uma integração cultural, social e política, pois, sem isto, as forças opressoras não vão tardar em reassumir o poder.
É importante também não esquecermos qual é a correlação de forças no nosso continente. As elites dominam os meios de produção industrial e agrícola e hegemonizam a comunicação – talvez o mais estratégico instrumento de dominação. Tais unidades de poder maquinam as engrenagens da história de forma que ela se rompa antes mesmo de dar sua primeira volta. Os meios de comunicação de massa, altamente elitizados e conservadores, e a alta burguesia são a força contrária ao processo de emancipação e soberania que está em marcha na América Latina.
Esta emancipação e integração da América Latina passa obrigatoriamente pelo acesso à comunicação como instrumento político. Sem uma comunicação mais democrática não há possibilidade de fortalecimento da nossa luta. Vivemos hoje um período em que os meios de comunicação têm uma importância fundamental na formação da nossa visão de mundo. Entretanto, o que verificamos é um monopólio e uma concentração dos veículos na mão de pouquíssimas famílias. Via de regra, tal elite procura formar indivíduos apolíticos, desinteressados e descomprometidos com o futuro das sociedades em que estão inseridos. Os meios de comunicação transformaram-se em meras ferramentas comerciais de reprodução de indivíduos voltados para o consumo. Quem ousar reverter esse processo e inserir uma programação mais regionalizada, independente e passível de participação popular, estará, sem dúvida, trabalhando a favor da libertação da América Latina do julgo de seus dominadores. Hugo Chavez, ao criar a Telesur, primeiro canal de televisão voltado para a América Latina, com ampla participação popular, deu um importante passo nesse sentido.
Precisamos produzir nossas próprias ferramentas de comunicação e de conhecimento, pois caminharemos rumo a uma sociedade mais igualitária e plural. E é por isso que os movimentos de libertação do conhecimento têm muito a contribuir neste debate. O movimento Software Livre vem quebrando fronteiras tecnológicas, permitindo uma democratização do acesso à tecnologia e também o desenvolvimento colaborativo dela.
O “Creative Commons”, é outra interessante ferramenta para a nossa libertação, pois permite o copy left e reserva apenas alguns direitos na produção de conteúdo intelectual. Isto significa que esta licença garante a autoria das obras, porém, de acordo com a vontade do autor, libera alguns direitos para a comunidade. Com isto, torna-se possível criar uma nova obra a partir de outra já criada. Ou seja, construir colaborativamente para aquele conhecimento. Isto permite a inclusão de características regionais em cada obra e ela deixa de ser egoísta-hegemônica para ser solidária-colaborativa. Essa é a verdadeira divisão do poder nas comunidades locais e nós, da América Latina, temos em nossa raiz social o processo colaborativo nas veias.
Da prata ao software fica clara a disputa travada na sociedade: de um lado, temos a propriedade, o domínio, o resultado financeiro como mola propulsora da concentração de renda e riquezas; do outro, temos a colaboração, a solidariedade e a liberdade para construir uma América Latina democrática e socialista! Cabe ao Estado, regulador e dirigente dos rumos do país, indicar e garantir o caminho e ao Movimento Social pressionar e lutar!
João Paulo Mehl é militante do PT do Paraná e Coletivo Soy Loco Por Ti
Marco Antônio Konopaki – Amarelo, militante do PT do Paraná e Coletivo Soy Loco Por Ti
Revisão
Rachel Callai Bragatto, jornalista, INTERVOZES
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